Sniffin’ Glue e outros hábitos punks

sg11Em 1976, a emergente cena punk norte-americana já atravessara o Atlântico rumo a Europa e, aos poucos, conquistava milhares de jovens que viam na “nova onda” um resgate do verdadeiro espírito do rock’n’roll, àquela altura totalmente cooptado e diluído pela indústria fonográfica. Um desses garotos era o bancário Mark Perry, então com 19 anos. Obcecado pelo rock desde os primeiros anos da adolescência e fã de grupos glam como T.Rex, Roxy Music, Mott The Hoople e David Bowie, Mark não demorou a ser atraído pela novidade.

“O rock não era uma bobagem total antes do punk, mas eu sentia que entre nós, os fãs, e eles, os grupos, havia um abismo difícil de superar. Era tipo um clube exclusivo, que tinha os Beatles e os Rolling Stones como fundadores, e a única maneira de se tornar um membro era se fechar por anos no seu quarto aprendendo a tocar guitarra. Os membros desse clube eram tão especiais que eu me considerava uma pessoa ordinária”, afirma Perry em uma passagem do livro Sniffin’ Glue The Essential Punk Acessory, que conta em detalhes minuciosos a história do Sniffin’ Glue (leitura obrigatória) e do qual foram tiradas as aspas desse texto, em tradução livre.

Novidade no ar

As coisas começaram a mudar quando Perry conheceu o chamado “pub rock”, uma espécie de cena que sempre existira em Londres, mas sem muita cobertura da mídia. Bandas como Dr. Feelgood, The Kursaal Flyers, 101ers (que tinha Joe Strummer entre seus integrantes), Hammersmith Gorillas e Eddie and The Hot Rods, estavam entre os principais representantes dessa vertente. Além de tocarem um R&B básico com paixão e energia nunca vistas por Perry, essas bandas se apresentavam em lugares pequenos, que faziam com que os fãs se sentissem bem mais próximos dos músicos. Muitas vezes, era possível tomar umas brejas ao lado deles, antes ou depois das apresentações. Sem dúvida, uma das raízes do punk rock.  

sg4A grande mudança se iniciou nos primeiros meses de 1976, quando o NME (New Musical Express, o principal semanário musical da Inglaterra por décadas) começou a dar notícia – bem poucas, é verdade – da emergente cena punk novaiorquina. Ao ler um artigo sobre o álbum de estreia do Ramones, Mark sentiu que precisava ouvir aquilo. E quando o fez, ficou fascinado. Faixas de dois minutos falando sobre cheirar cola, tacos de beisebol e serras elétricas encantaram o entediado auxiliar de escritório. “Era como se o rock progressivo nunca houvesse existido. Me rendi totalmente àquilo”. 

O golpe de misericórdia veio quando os Ramones tocaram na Inglaterra pela primeira vez, abrindo shows para o Flamin’ Groovies. Mark foi a duas dessas apresentações. Além de ter ficado ainda mais fascinado pela energia do estilo caótico, básico e matador do grupo, Mark conheceu pessoas, como Shane McGowan (futuro membro do The Nips e The Pogues) e Brian James, que lhe falou sobre sua nova banda, o The Damned. Imediatamente, Mark sentiu que precisava fazer parte daquilo que muitos já começavam a chamar de “punk rock”. 

“Faça você mesmo”

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Na semana seguinte, Mark foi à sua loja preferida, a Rock On, atrás de mais informações sobre o que vira no final de semana. Logo percebeu que nas revistas e tabloides sobre rock que circulavam na época (NME, Sounds, etc) havia pouco espaço para o punk e perguntou a um dos vendedores se havia algo que trouxesse mais informações. Em resposta ouviu um debochado “por que você mesmo não faz?” Como já conhecia alguns fanzines sobre outros assuntos, teve a ideia de fazer o seu próprio, que falasse sobre aquelas bandas. Nascia assim o Sniffin’ Glue And Other Rock ‘N’ Roll Habits, a pedra fundamental da comunicação punk.

“Eu tinha uma máquina de escrever infantil que ganhara em algum Natal e a usei. Onde faltava algo eu completei à mão e fiz os títulos com uma caneta hidrográfica. Vendo agora, parece um simples registro DIY, mas naquela época ainda não havia uma referência estética do punk. Eu só fiz o melhor que eu podia com o que estava à mão”, afirmou Perry em uma entrevista ao The Guardian, em 2019. (Leia aqui)  

As 50 cópias iniciais foram xerocopiadas pela namorada de Mark, Louise, no escritório que ela trabalhava. E ela ajudou a grampeá-las também. Quando Mark apareceu na Rock On com os fanzines em mãos, os vendedores mal podiam acreditar que ele havia realmente feito as “revistas”. Mas gostaram e compraram todas, pois a procura por qualquer coisa que se relacionasse ao punk já começava a despertar a atenção de todos na loja. Para completar ajudaram Mark a imprimir mais cópias e a distribuí-las em outras lojas.

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Além desse incentivo inicial – crucial para continuar sua aventura – Mark foi envolvido pela nascente cena londrina. Passou a ter contato direto com as bandas, incluindo um convite para acompanhar o Eddie and The Hot Rods em um show. No final de agosto de 1976, saía o segundo número do Sniffin’ Glue. A essa altura, a vida de Mark começava a, digamos, virar do avesso. Faltas constantes no trabalho, um novo corte de cabelo, roupas customizadas (propositalmente amarrotadas e rasgadas) e novas amizades com músicos e jornalistas de rock o afastaram da família e da antiga namorada, que não entendiam quem era aquele novo Mark. 

Crescendo com a cena

O velho Mark morreu de vez quando Caroline Coon, jornalista do Melody Maker o convidou para um show do Sex Pistols no lendário 100 Club. “Eles se pareciam e soavam como algo que eu nunca vira antes. Absolutamente deslumbrante e perturbador ao mesmo tempo. Me joguei na linha de frente e pulei loucamente. Minha jaqueta de cetim ficou em pedaços, em um ato quase simbólico que marcou o fim de meu antigo Eu”. 

Na mesma noite, Mark conheceu Vivienne Westwood e Sid Vicious, que pisotearam uma cópia do Sniffin’ Glue. Atitude que ele achou muito punk. Tempos depois, segundo Mark, ele se tocou de que Sid e a maior parte da troupe que rodeava os Pistols eram “posers”. Ainda naquela noite, Mark se reencontrou com Brian James e conheceu os outros integrantes do Damned, com os quais marcou uma entrevista para o terceiro número do Sniffin’ Glue.

sg12Desta vez, Mark buscou ajuda para fazer o fanzine. Para isso, escalou o amigo de infância Steve Micalef, ou Steve Mick. Os dois entrevistaram o Damned no local de ensaio da banda, que apelidaram de “O Cemitério”. A entrevista não só foi uma das melhores já publicadas no Sniffin’ como lhes rendeu a indicação de um fotógrafo amigo da banda, Mike Beal, que cedeu-lhes não apenas a foto de capa para o terceiro Glue, como o próprio Mark se referia ao fanzine, como também algumas de Iggy Pop. Os dois números anteriores não tinham foto de capa e nem dentro. Publicada em setembro de 1976, a edição foi um dentre vários acontecimentos cruciais daquele mês, um dos mais agitados no “ano zero” do punk. 

Naquele setembro ainda aconteceria o 100 Club Punk Festival, que reuniu em duas noites boa parte da nata do punk: Sex Pistols, The Clash. Vibrators, Damned e Buzzcocks, além das estreias do Subway Sect e Siouxsie and The Banshees (com Sid Vicious na batera) e uma banda francesa, o Stinky Toys. O festival foi tema de uma edição especial e limitada do Sniffin’ Glue. O número “3 e meio”, que já avisava na capa: “Esta edição é rara… rasgue-a e ela ficará ainda mais rara”. Tudo muito dentro do espírito punk!  

sg14“Foi nessa época que a indústria fonográfica começou, me perdoem, a sentir o cheiro do peido, e os caras da A&R foram obrigados a olhar para o punk. No início daquele ano, a maioria das pessoas no negócio do rock achava que o punk era apenas uma mancha suja que logo passaria. Como estavam errados! Mas assim que viram que poderiam ganhar dinheiro com aquilo começaram a rastejar para fora de suas tocas, fazendo as promessas vazias de sempre para as bandas punk, algumas que haviam feito uma ou duas apresentações apenas”.  

Entre gigantes

Em outubro, o punk já estava em um estágio muito mais avançado e Mark já preparava o Sniffin’ Glue número quatro, depois de pedir demissão no emprego. A bola da vez seria o The Clash, entrevistado no estúdio em que ensaiavam. O clima da entrevista foi tenso, devido à postura radical da banda. Mas no fim das contas, deu muito certo e a matéria é uma das melhores já publicadas sobre a banda.

sg15“Falar com o The Clash naqueles dias, especialmente quando estavam todos reunidos em uma sala, era quase como estar em uma entrevista de emprego – fale alguma coisa errada e você está fora. Isso prova que a banda estava totalmente comprometida com a música que faziam e entendiam que a melhor maneira de evitar serem mal interpretados pela imprensa era impor uma frente unida. Apesar de eu ter dúvidas sobre eles, eu sabia que era a banda mais importante que surgira até ali. O Sex Pistols arrombou as portas que abriram caminho para eles, mas se havia alguém que podia vencer a revolução seria o The Clash”.

A quarta edição trazia ainda The Saints, Patti Smith, Buzzcocks e The Jam. O sucesso chegara. Após o lançamento e com punk já tomando conta da imprensa musical e roqueira, o Sounds (principal concorrente do NME) fez uma edição especial sobre o assunto e falou um pouco sobre Perry e o Sniffin’ Glue. O artigo rendeu a fama de “profeta do punk” a Mark, que passou a ser procurado por todos que queriam saber algo sobre o “movimento”. 

sg16Em novembro de 1976, saía o Sniffin’ Glue 5 com uma icônica foto de Barry Masters, vocal do Eddie and The Hot Rods na capa, mais matérias históricas com o Subway Sect e o Chelsea. Uma edição marcante também pelo editorial assinado por Mark, no qual atacava a mídia, dentro e fora da cena. Em um trecho, instigava os leitores a “saírem e começarem seus próprios fanzines (…) inundem o mercado com matérias punk!” Coincidência ou não, nos meses seguintes um número significativo de novos fanzines inundava as prateleiras das lojas. “Parte desse material era um lixo mas esse não era o ponto. O que era importante é que eles (os punks) estavam fazendo acontecer, estavam se envolvendo. Para mim, era sobre isso que aquilo tudo era. O Sniffin’ Glue foi o primeiro, mas eu não queria me acomodar nos meus louros e ver a coisa toda parada. A única maneira daquilo seguir em frente era ter mais pessoas envolvidas”. 

sg20Para fazer a entrevista com o Chelsea, que pouco depois se transformaria no Generation X com Billy Idol no lugar de Gene October, Mark foi com a banda para Manchester, onde tocaram com o Buzzcocks no também lendário Electric Circus. Os punks locais chamaram a atenção de Mark. “Parecia que haviam saído de um jogo de futebol. Naquele tempo os jovens do norte sempre pareciam estar um passo atrás dos de Londres em relação à moda e aqueles punks não eram diferentes. Isso me fez pensar em como a cena punk se tornara grande. Eu sabia que para o punk ter mais público precisaria ir além da bolha londrina e chegar aos garotos normais de todos os cantos do país, que não tinham qualquer perspectiva de um emprego ou mesmo uma vida decentes. A maioria daqueles moleques nunca haviam ido à King’s Road (famosa avenida de Londres frequentada por punks até hoje, a maior parte, posers) e provavelmente não estavam nem aí se as roupas que usavam eram ou não ok. Acima de tudo, o punk era o bom rock’n’roll e o rock sempre foi uma válvula de escape para a entediada e desiludia juventude britânica” 

O céu é o limite

Ainda naquele novembro, o staff do Sniffin’ Glue ganhou um novo integrante, o “fotógrafo” Harry Murlowski. O novo membro não só cobria um vazio, pois até então o fanzine usava fotos roubadas ou emprestadas, como trazia conhecimentos extras. Até ali, o fanzine era xerocado e Murlowski conseguiu com a Rough Trade uma impressora offset por um bom preço. Outro passo adiante foi a troca de endereço. Até então, a “redação” era na casa de Mark, o que obviamente chateava seus pais, devido às constantes visitas de todos os tipos de punks e interessados. O novo escritório ficava nos fundos da Rough Trade.

sg19Àquela altura, o Glue passava a sair com uma tiragem de 2.000 cópias, algo próximo de muitas revistas normais. Chegaria a 10 mil! Mark também passara a ser procurado por outras publicações para escrever artigos sobre a cena ou bandas punk. A “mancha suja” não parava de crescer. E começava a ser um problema também, claro. Em dezembro o Sex Pistols apareceria pela primeira vez na TV inglesa numa infame e caótica entrevista para o apresentador Bill Grundy. A repercussão do incidente colocou o punk contra a parede, e a conservadora sociedade inglesa contra toda aqueles “jovens repulsivos”. No fim das contas, foi uma publicidade que tornava o punk ainda mais atraente para a desiludida juventude inglesa. Ao mesmo tempo em que a maioria dos pubs e casas de shows fechavam as portas para o punk, surgiu o Roxy Club, fundado por um cara chamado Andy Czezowski, empresário o Damned, e inaugurado em 21 de dezembro. O punk passava a ter sua “casa” em Londres. A cena crescia em meio à turbulência. E o Sniffin’ Glue também.

sg21Em meio a isso tudo, Mark lançou um especial de Natal, com apenas três páginas e do qual foram impressas apenas 20 cópias! O Sniffin’ Glue número seis sairia apenas em janeiro de 1977, com as primeiras fotos de Murlowski, que retratavam o Sex Pistols durante a também infame e caótica turnê Anarchy In The UK. Mas a foto de capa era do Clash, creditada à fotógrafa norte-americana Sheila Rock.  

No início de 1977, o punk já era uma realidade com centenas de bandas surgindo por toda a Europa, assim como selos independentes e lojas especializadas na “nova onda”. Ao mesmo tempo, inúmeras bandas assinavam contratos com as grandes gravadoras. E isso chateava um pouco o idealista criador do Sniffin’ Glue. Para ele, o caminho era os selos independentes que davam total liberdade às bandas para fazerem o som que quisessem.

Ação em várias frentes

sg23No Sniffin’ Glue 8, Mark novamente escreveria um editorial crítico em relação à cena, falando de atitudes agressivas demais de fãs em um show do Clash (violência entre os próprios punks) e também se defendendo de críticas por ele escrever também para o Melody Maker e o o National Rockstar, publicações da circuito “mainstream”. A verdade é que em pouco mais de seis ou sete meses, Mark e o Sniffin’ Glue começavam a ser criticados e acusados da mesma maneira que no início criticavam e acusavam os hippies, a grande imprensa e a indústria cultural. O feitiço começava a se virar contra o feiticeiro?

sg25Paralelamente, Mark conheceu um cara chamado Nick Jones, que o apresentou a Miles Copeland (irmão de Steve Copeland, batera do The Police). Eles queriam fundar um selo punk, com Mark à frente. Nascia assim a Step Forward Records. As primeiras bandas a assinarem com o selo gerenciado por Mark foram o Chelsea, o The Cortinas e o The Models. Isso tomou quase todo seu tempo e ele delegou a um amigo de infância, Danny Baker, a missão de editar o Sniffin’ Glue 9.  O resultado foi decepcionante para ele, mesmo assim, manteve Danny para o número 10, não sem muita discussão e cobranças quanto ao conteúdo. 

sg8-atvNesse período Mark também começava a dar os primeiros passos com sua banda, o Alternative TV. O selo e o grupo passaram a tomar todo seu tempo e o seu interesse pelo Sniffin’ Glue era cada vez menor. A ideia de acabar de vez com a aventura começava a tomar forma em sua cabeça. O punk agora era um grande negócio também. Até mesmo sua banda se aproximara da EMI. Não que tivesse assinado um contrato, apesar de ter recebido uma oferta. Mas chegou a gravar quatro faixas em um estúdio profissional, com patrocínio da gravadora que tanto criticara em seu fanzine.

Crescer ou morrer?

sg24Para o Sniffin’ Glue 11, Mark e sua equipe decidiram convidar colaboradores para escreverem artigos. Entre eles estavam o jornalista Sandy Robertson, Mick Jones e Jon Savage. Chama a atenção também nesse número o anúncio de um LP do Parliament. Era cada vez mais evidente que o fanzine chegara a um ponto que precisava de mudanças ou acabaria. Harry Murlowski chegou a sugerir a Mark em transformá-lo em uma revista propriamente dita. Mas ele se recusou e decidiu que a próxima edição, o número 12 seria a última, o que acabou acontecendo mesmo.

sg26O último Sniffin’ Glue trazia o Sham 69 na capa. A banda assinara com a Step Forward, responsável pelo lançamento do LP Tell Us The Truth e do single I Don’t Wanna. Mark Perry assinou uma matéria sobre a Chiswick Records, um dos mais importantes selos independentes dos anos 70, não apenas para o punk. Na conclusão do artigo ele escreveu o seguinte desabafo: “Se você quer realmente destruir, deixe seu emprego ou escola ou qualquer outra coisa que esteja envolvido, vá para a estrada e sente-se à espera de uma carreta passar por cima de você. Ela vai te destruir, seu burro estúpido. Pare de ler o SG agora e queime sua cópia. Todas as cópias queimadas podem ser deixadas na Rough Trade ou enviadas para nós (se concordar em pagar 7 pences). Eu quero que você queime o SG 12 e queime-o bem. Não, eu não estou brincando, apenas sendo honesto, e isso dói!!!”

Já em seu livro sobre o Glue, ele justifica a decisão de dar um fim ao fanzine com essas palavras: “No fim de 1977, o punk havia sido assimilado pela indústria musical. No começo de 1978, o Sex Pistols implodira depois de sua tour pelos EUA. Bandas como The Clash e The Jam estavam a caminho de se tornarem as maiores do rock britânico. Eu pensava que o punk poria um fim ao rock como mercadoria mas no fim das contas parece que ele deu ao mercado um novo sopro de vida”. Fica a reflexão. 

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